quinta-feira, 7 de abril de 2011

PATRIMÔNIO DE TODOS

Sem defesa, fábrica da Matte Leão começa a ser demolida
Falta de agressividade em preservar memória fabril tira de Curitiba o prédio da empresa que projetou a cidade Publicado em 07/04/2011 | JOSÉ CARLOS FERNANDES
 Teve início nesta semana a demolição da sede histórica da Matte Leão S.A, indústria que ocupava mais de um quarteirão na altura das avenidas Getúlio Vargas com João Negrão, no bairro Rebouças, em Curitiba. O terreno de 16,3 mil metros quadrados foi vendido pela família Leão para a Igreja Universal do Reino de Deus, no início de 2010. O valor estimado da transação foi de R$ 32 mi­­lhões. No local será construída uma nova Catedral da Fé – a exemplo da erguida pela instituição na Avenida Sete de Setembro. 
Desde seu fim anunciado, a derrubada da fábrica causa impressão entre arquitetos, historiadores e ex-funcionários da “Leão Júnior”. Para os experts em gestão de patrimônio, a liberação das picaretas vai na contramão das políticas mundiais de preservação da memória fabril, impulsionadas com o crescimento das cidades, diminuição de grandes áreas e ameaças contínuas de especulação imobiliária. 
O espaço símbolo de “reciclagem” no Brasil é o Sesc Pompeia, em São Paulo, endereço operário transformado pela arquiteta Lina Bo Bardi em um dos entrepostos culturais da capital. A Matte Leão não teve a mesma sorte, à revelia de ter sido criada em 1901 e do lugar que ocupa no imaginário paranaense. Foi graças ao ciclo da erva-mate que o estado conheceu a pujança econômica e cultural no século 20, do qual os Leão eram símbolos incontestes.
O superintendente estadual do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, José La Pastina, lembra dos atentados em série à memória fabril em Curitiba, do qual o episódio Matte Leão, reconhece, é um dos mais lastimáveis. Ele cita o desaparecimento das fábricas de massas, como a Todeschini; e as de móveis, como a Cimo. E se confessa pouco otimista. “Eu diria que a proteção fabril estagnou.” A seu ver, uma saída seria manter uma parte das fábricas antigas funcionando, de forma subsidiada e artesanal, a exemplo da que ainda produz o uísque Jack Daniel’s, nos EUA.
Culpa de quem?
O não reconhecimento da Matte como patrimônio é demanda da fragilidade das políticas de preservação no município. Em vez de tombamento, o Ippuc aplica “alertas” na documentação de imóveis importantes ou os cadastra como “unidades de interesse”, as UIPs. Prédios dessa categoria podem ser alterados, o que não acontece nos tombamentos, desde que com acompanhamento.
É uma prática moderna. Na última década, porém, o Ippuc reduziu o poder de fogo e se tornou mais econômico na escolha de novas unidades – hoje perto de 700. Boa notícia, apenas, é o Iphan ter ganhado a custódia da paisagem ferroviária local – o que é uma garantia – e dois editais de pesquisa, um fabril e outro ferroviário, lançados pela Fundação Cultural.
Mas não foi o bastante. A venda da Matte Leão para a Coca-Cola e a transferência da empresa para Fazenda Rio Grande deixou o prédio centenário desprotegido. Ao ser vendido para a Universal, não era unidade de preservação, o que apressou seu destino.
A demolição, por ironia, frustra um projeto da própria prefeitura, pondo à mostra uma contradição do poder público. No início dos anos 2000, a Fundação Cultural (FCC) se mudou para um antigo moinho da Rua Piquiri, como modo de dar impulso ao SoHo Rebouças – projeto de revitalização da área. Incluir a Matte fazia parte dos planos.
Em meio aos impasses, a FCC se manifestou contra a demolição e avalizou o valor arquitetônico de pelo menos parte do prédio, com o qual a igreja poderia conviver sem penitência. Além da fachada da Getúlio Vargas, o historiador Marcelo Sutil, da FCC, destaca os trilhos de trem internos, as estruturas de madeira e os telhados – entre outros elementos passíveis de preservação. O parecer levou o Ippuc a carimbar um alerta na papelada ano passado, mas já era tarde.
O supervisor de Pla­­nejamento do Ippuc, Ricardo Antônio Bin­do, admite que a decisão sobre o destino da Matte Leão “mexeu com os nervos” de seu gabinete. Mas que se trata de um impasse antigo, sobre o qual teve de fazer uma escolha de Minerva. Desde a década de 1970, com a criação da CIC e transferência de muitas empresas do Rebouças para lá, a prefeitura passou a ver no bairro operário um ponto estratégico para o desenvolvimento do Centro.
Ao pagar R$ 7 milhões a mais do que o avaliado, a Universal ficou com o terreno e com o poder de demolir a fábrica. É o que está fazendo. Incluindo a única parte que o Ippuc recomendou preservar – dois sobrados adendos, na esquina da Piquiri, com influência da arquitetura art déco. A igreja poderia usar dos benefícios dados a quem preserva. Até onde se sabe, dispensou a esmola.



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